JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

Cabaça para carregar água no sertão

Meizinha, suvaco, adijutoro, rapariga, disculhambação, cabra besta, gaiudo, gabolice, catá coquinho, vacuá e tantas outras falas são, não apenas o linguajar da roça vivido pelo matuto. Existe um universo muito grande envolvendo tudo isso.

Traduzir a coragem e a persistência – às vezes, até por ter consciência da impossibilidade de solução para apenas um problema – do matuto, aquele que realmente produz riqueza pela força do trabalho na agricultura e afins, é algo muito difícil.

Madrugar – acordar e levantar, quando o novo dia começa a clarear – não é apenas uma necessidade, é um hábito.

E escutar o galo cantar, a vaca mugir ou o berro dos cabritos é rotina. É o despertador da roça – para os abastados, na “fazenda”.

Era assim em Queimadas – povoado de Pacajus, no Ceará – quando o sol avermelhava o céu mostrando aquele colorido encorajador para Raimunda Buretama e os netos. Muitos netos. Nas férias escolares, mais de uma dúzia deles.

– Levante meu fii, se avexe e vamos buscar água prumode fazê o café e o dicumê!

Caminhar 12 Km (6 na ida e 6 na volta) pelas veredas para apanhar uma cabaça d´água não era coisa que uma criança entrando na adolescência gostasse de fazer. Mas era preciso fazer. Tinha que acontecer.

Eram duas caminhadas, o que acabava significando 24 Km por dia – “apenas para buscar água” – para uma casa com nove moradores. O banho ficava para a segunda viagem ou no fim da tarde, com a possibilidade improvável da garupa do jumento do Avô, depois que esse voltava da roça e precisava banhar e “dar de beber” ao animal.

Cinco, seis e até sete anos fazendo isso. Chovesse ou fizesse sol.

E aqui fazemos uma pausa para uma indagação – será que a água tem importância para uma família dessas?

Será que a transposição do São Francisco significa alguma coisa para várias famílias que vivem esse dilema?

Pote de largo uso sertanejo

Na casa, com cenário antigo por longos e longos anos, o abrir as cortinas mostrava um pote sobre uma trempe, ou, uma forquilha com três braços. Coador de morim amarrado na boca, para evitar a passagem de gravetos ou de martelos na água de beber. Ferver a água, nunca. A água só fervia quando era colocada no fogo, na lata de fazer café com um pedaço de rapadura para dissolver e adoçar.

Nos raros invernos, uma terrina de cimento servia como cisterna da água da chuva aparada na calha feita do sabiá (mimosa caesalpiniaefolia), uma madeira de grande serventia e aproveitamento no interior. A água ali depositada servia para aplacar a sede dos caprinos, das galinhas e outros animais domésticos criados para o abate e consumo da família nos momentos difíceis.

Nos anos 50, 60 e meados de 70, nenhuma residência do interior do estado tinha água tratada e canalizada – e isso significava dizer que esgoto ninguém conhecia naquelas paragens.

Fazia-se as “necessidades” num buraco feito no chão e a “assepsia” era feita com sabugo de milho ou folha de marmeleiro.

Hoje, acreditamos, tudo é diferente. Já não se faz necessário caminhar mais 24 Km e a cabaça e o pote foram praticamente abolidos, embora as casas permaneçam quase sempre as mesmas: paredes de estuque, chão de barro batido, fogão à lenha; portas fechadas com tramelas, apesar da crescente e preocupante violência urbana.

E dá uma saudade danada relembrar a caminhada diária de 24 Km. Dá uma saudade danada do bom, da ingenuidade, da coisa boa e, principalmente, da convivência e da unidade familiar – coisa que a tecnologia exterminou, trazendo junto a evolução.

Felizmente ainda é comum, nos povoados do interior, a “roça familiar” – batata doce, macaxeira, feijão, maxixe, quiabo, tomate, coentro, cebolinha verde e, nas Queimadas os primos e filhos dos primos nunca deixaram de preservar as moitas de mofumbo, arbusto preparado para a reprodução dos capotes – galinha d´angola.

Ali a tecnologia também chegou. Felizmente não conseguiu acabar com a tradição e sequer foi motivo para impulsionar mais uma “Revolução dos bichos”.

6 pensou em “A CABAÇA E O POTE

  1. Oh meu amigo, bebi muita água dessas cabaças quando cortava cana, e o segredo é que ela mantinha água fresquinha, colocava em uma sombra pra não receber os raios solares.

    • Luís Xavier, obrigado. Cortando cana nunca bebi. Mas, limpando a roça, bebi incontáveis vezes. Fechava a boca com um sabugo de milho.

  2. Prezado ZéRamos, ler suas crônicas aos domingos é um bálsamo, não vivi esta vida, morava em Fortaleza nos anos 50/60, mas nas férias escolares íamos para o Frade (atual Jaguaretama) e vivíamos esta vida, para mim era uma novidade, para meus primos, a realidade. Quando leio seu “escrito” volto no tempo, rio sozinho e sinto saudade. Obrigado, tenha um bom domingo e que Deus o mantenha sempre assim.

    • Marcos, obrigado. Botar a cabaça no ombro e virar para a boca para beber água é um hábito sertanejo que só os que viveram sabem o que significa. Eu saí da roça, mas a roça nunca vai sair de mim. Tomara!

  3. Meu caro JR, conheço bem essa rotina de ir em busca de agua. Andava “léguas”(coisas do meu tempo) a procura de agua. Felizmente, a gente tinha um jumentinho, que não era nenhum polodoro, mas quebrava o galho muito bem. Era uma “loita” diária, e como você mesmo disse, para um garoto entrando na adolescência, pensando no racha, na rua empoeirada, era um castigo enorme, rsrsrs.

    • Beni, época de muito sofrimento, neta?! Quase todos tinham um jumento – e muitos adoravam uma jumenta! Época dos cambitos, dos tonéis e a necessidade de “encher os potes”! Vida que faz a gente sentir saudades!

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